Todas diferentes, todas semelhantes:
Panados e arroz de tomateQuinta da Cruz da Pedra
Todas diferentes, todas semelhantes:
Panados e arroz de tomateOutras terráquias de cabeça no ar:
Panados e arroz de tomateMilénios de conflitos religiosos, de fome, desigualdades. As mesmas vítimas de sempre criando novas gerações de vítimas em potência. Os boletins de voto que servem para apedrejar, de repente só os outros têm telhados de vidro. A cegueira do privilégio, interrompida, a espaços, por raios de consciência sobre a dor dos outros, sobre a qual podemos tão pouco. Go fund me e alguém que salve o outro. O tempo que anda à roda, as notícias que não conseguimos ler. A informação a que não conseguimos chegar no meio das torrentes de dados. E hoje a rádio a falar da cria de urso resgatada por um centro de acolhimento em San Diego, em que os tratadores se mascaram para que o animal recupere sem se afeiçoar aos humanos. Tanta, tanta força para não abrir a janela do carro e gritar de absurdo. Porque, apesar de tudo isto ser História, e quase nada de novo, é a nossa história. Há só um tanto que podemos deixar-nos estar sentados no sofá a fazer scroll, de pantufas.
Outros modelos de pantufa disponíveis em:
Panados e arroz de tomate
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imagem gentilmente cedida pelo meu esposo |
Começo de novo. Na praia onde vou há 30 anos, no Algarve, há uma pedra solitária a cerca de uma milha da ponta oeste do areal. Ou, antes, havia. Nos anos 90, ficava numa zona sem banhistas. Nos dias em que os meus pais estavam fartinhos de nós e queriam fazer a sesta a seguir ao almoço, deixavam-me levar o meu irmão e as minhas primas, todos mais novos, de barco inuflável até à pedra. Brincávamos à Lagoa Azul (menos a nudez infantil e as tartarugas marinhas). Eu fantasiava com nunca mais ter de estudar matemática. Rondávamos a pedra a medo, na maré baixa. Porque a verdade é que, quando a maré subia, as ondas quase sempre modestas daquela baía contornavam toda a pedra e deixávamos de poder chegar-lhe.
Nos anos 2000, essas mesmas ondas modestas conseguiram rachar a pedra. Alguns veraneantes, fartos dos magotes de turistas alemães que aterravam naquela praia, passaram a levar toalha e farnel para junto da pedra. O segredo ficou a descoberto, as minhas primas nunca mais vieram passar férias connosco, mas levei lá duas amigas na primeira viagem só com elas. E última, agora que penso nisso.
Nos anos 2010, a pedra desfez-se um pouco mais. Passou a ser o extremo oriente da praia dos meus filhos pequeninos. Ir correr até à pedra era a maior distância que eles concebiam. A pedra é testemunha da sobrevivência a essa época em que o meu traseiro não há de ter passado mais do que 10 minutos sentado na toalha.
Ainda hoje não tenho toalha de praia. Nos anos 2020, os meus filhos não usam as deles, tenho toalhas que bastem para ler livros de rajada, apanhar sol virada para cima e para baixo, ir ao banho sem me preocupar. Mas a parte melhor de ter filhos adolescentes é ainda irmos todos a correr até às pedras, eles ganharem e ainda ficarem muito contentes com a proeza. Quando as pedras forem areia e já não conseguir correr, ponho-me a boiar nas ondas modestas. Deixá-las fazer o trabalho delas.
As minhas companheiras de erosão:
A Curva
A Gata Christie
Boas Intenções
Dois Dedos de Conversa
O blog azul turquesa
Panados e Arroz de Tomate
Quinta da Cruz de Pedra
Os yolles de quatro em que remava (ou timonava, se havia cinco raparigas e as outras eram mais fortes que eu) metiam bastante água, se bem me recordo. Uma ou outra tainha do Tejo também, elas devem andar um bocado dopadas e saltam sem aviso, a avaliar pela composição química dos nossos esgotos. Mas isto para dizer que meter água não é necessariamente uma coisa má. Até há aquele princípio em relação às crianças que aconselha a meter água se estiverem rabujentas, seja pela via do copo, da banheira ou da mangueirada. Meter água é das coisas mais humanas que há. O corpo humano é tanto mais saudável quanto maior a percentagem de sangue (ou seja, água com coisitas vermelhas misturadas) a circular. Ou se calhar isso não é verdade e estou a meter água da maneira mais habitual, que é fazendo afirmações com aparente certeza e nenhuma pesquisa, também conhecido na minha família por "gralhar", daí o nome do blogue. Meter água e não tentar disfarçar com panos ou desculpas esfarrapadas é uma revolução contra um sistema que nos obriga a fingir proficiência o tempo todo. Deixemos crescer a infiltração da civilização. O que é estanque não é punk. Mais vale um deslize de boca do que uma consciência oca. Quem suportaria tantas campanhas eleitoriais se os nossos candidatos não fossem mestres nesta arte, afinal de contas?
As restantes adeptas do meter água:
No Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile, há um corredor inteiro cheio de obras de artesanato de prisioneiras do regime de Pinochet, coisas francamente bonitas, espampanantes, orgulhosas. Num vídeo, entrevistam algumas das libertadas, que contam como ocupavam o tempo cantando, fazendo competições, trabalhando com as mãos para dar sentido ao muito tempo passado à espera. A alegria como resistência é daquelas coisas que nos dá esperança na humanidade em tempos como o que vivemos.
Isto também me fez perceber, com os olhos límpidos de quem estava de férias há quase duas semanas, que o problema do trabalho não é o trabalho em si, é o facto de dele depender a sobrevivência da esmagadora maioria de nós. Se eu pagasse o supermercado e a renda com o tempo que dedico a ler ou a correr, talvez essas atividades perdessem muito do seu encanto. O problema é o trabalho remunerado realmente não nos libertar.
Mulheres que continuaram a trabalhar enquanto estive no (muito merecido) bem bom:
A Quaresma é um período de 40 dias antes da Páscoa que convida à preparação para essa festa maior dos cristãos. Esses 40 dias podem parecer uma eternidade, para quem se comprometeu a jejuns dolorosos, ou podem parecer insuficientes, para quem esteve tão embrenhado no frenesim dos nossos tempos que mal arranjou uns minutos de concentração para rezar como deve ser. Adivinhem em qual das categorias me encaixo em 2025? Em ambas. Assim diz o catecismo da Igreja Católica que é também o Purgatório.
Claro que sou uma católica muito moderna, que desconfia de aparições, ladainhas e decretos emitidos por homens privilegiados há séculos. A palavra "purgatório" evoca aqueles chás detox que prometem fazer o que o nosso fígado tem assegurado desde que nascemos, benza-o Deus, mas com muito mais despesa e ilusão de auto-controlo. Qual o Papa que mais difundiu a doutrina do Purgatório? Gregório Magno. Se isto não é manifestação do sentido de humor de Deus.
Claro que sou uma católica muito consciente da sua pequenez, pelo que rapidamente me deixo de argumentações adolescentes e reconheço que só sei que sei muito pouco, mas confio. Se há mesmo Purgatório, um estado de purificação para as almas que morrem na graça de Deus, mas ainda não estão completamente purificadas, é fácil de adivinhar que quase todos lá vamos passar uma temporada. Os portugueses levam vantagem, estamos muito habituados a esperar e lidar com a burocracia. Mas se o objetivo é percorrer o caminho da santidade como deve ser, como não soubemos ou pudemos fazer em vida, pode ser a oportunidade que nos faltava. Parar, olhar lá para baixo e ver a pequenez das coisas que nos irritaram, a desnecessidade de magoar pessoas de quem gostávamos, as promessas não cumpridas. Pousar essa mochila tão sobrecarregada, descontrair os ombros. Olhar para cima e sorrir. O ser humano carece destes contrastes. Como diz Thomas Merton, a música não é agradável apenas pelos sons mas pelo silêncio que contém: sem a alternância entre som e silêncio, não haveria ritmo.
Boa Páscoa!
Outras almas a precisar da vossa intercessão:
(em atualização)